terça-feira, 13 de fevereiro de 2007
Gore Vidal - Entrevista na Folha
Com Bush, perdemos a Constituição, diz Vidal
Seis anos de governo do republicano custaram aos EUA sua Carta Magna, o habeas corpus e os processos da lei, acredita pensador norte-americano
SÉRGIO DÁVILA
DE WASHINGTON
LOGO DEPOIS do ataque terrorista de 11 de Setembro de 2001, a impressão de um estrangeiro que morasse nos EUA era de que, num país de 300 milhões de pessoas, apenas três (ou 0,0000 01% da população) mantinham distanciamento e senso crítico e buscavam razões que iam além de "eles odeiam nosso "way of life" em suas análises.
Uma delas era o escritor Gore Vidal, que, na época, foi banido da mídia e só não foi banido do país porque já passava mais tempo em sua casa na Costa Amalfitana, na Itália. Aos 81 anos, está de volta ao que chama de "regime cada vez mais totalitário", da "Junta Bush-Cheney". Problemas de saúde o impedem de andar, mas não de manter um discurso ácido, como comprovou a Folha na entrevista por e-mail com o autor.
FOLHA - Depois do 11 de Setembro, o quão solitário era ser o senhor, uma das três ou quatro vozes norte-americanas que ousaram dar opiniões contrárias às da "Junta Bush-Cheney", como o sr. os chama?
GORE VIDAL - Muitas vozes se levantaram contra as guerras do presidente depois do 11 de Setembro. O único momento em que me sinto solitário é quando percebo que a mídia controlada pelas grandes corporações tem negado o direito de crítica contra um regime cada vez mais totalitário. Mas, desde as eleições roubadas de 2000 [em que Al Gore, parente de Vidal, ganhou no voto popular, mas perdeu na Suprema Corte para George W. Bush], tenho falado para grupos cada vez maiores contra a junta Cheney-Bush.
FOLHA - Quase seis anos depois, o que mudou nos EUA?
VIDAL - Seis anos depois perdemos um dos presentes que os ingleses nos deram como despedida quando deixamos de ser uma colônia: a Carta Magna e, com ela, o habeas corpus e os processos devidos da lei. Mas, por mais que o nosso povo seja mal-educado, mal informado e lento, o governo Bush é atualmente apoiado por menos de 30% das pessoas. Ele já é, como eu previ, o presidente menos popular da nossa história.
FOLHA - Em 2002, muito antes de o presidente chegar ao nível em que chegou, o sr. escreveu: "Guardem minhas palavras, ele vai deixar a Casa Branca como o presidente menos querido da história". Como sabia?
VIDAL - Como as bruxas da Nova Inglaterra costumavam dizer: "By the pricking of my thumbs, something wicked this way comes" ["Pelo coçar de meus polegares, algo sinistro vem nessa direção", frase de "Macbeth", de Shakespeare].
FOLHA - Se Hillary Clinton for eleita em 2008 e reeleita quatro anos depois, os Estados Unidos terão passado 35 anos com Bushes e Clintons na Casa Branca. Depois disso, podem ainda ter Jeb Bush como candidato (ou Chelsea, ou uma das gêmeas Bush). O sr. acredita que seu país está se transformando em uma monarquia?
VIDAL - Os Estados Unidos, uma monarquia? Difícil... Mas eu posso ver uma espécie de Guarda Pretoriana sendo formada por gente com dinheiro, imperadores magnatas do petróleo -ou da cana de açúcar? Afinal, a grande conquista dos Bushes foi nos levar para muito longe da nossa Constituição e da Carta dos Direitos [Bill of Rights, as primeiras dez emendas da Constituição dos EUA]. E repúblicas que se perdem no caminho muito raramente se recuperam por completo.
FOLHA - O ano de 2007 vai marcar o 40º aniversário de "Washington, D.C.", o primeiro volume da sua série "Crônicas Americanas", e o 20º aniversário de "Império", talvez o livro mais importante entre os de sua autoria. Daqui a 40 anos, o que o sr. imagina que terá sobrevivido desse império?
VIDAL - Impérios que acabam com todo o seu dinheiro e com os seus soldados deixam muito pouca herança...
FOLHA - A propósito, como os EUA que o receberam de volta em 2003 são diferentes do país que o sr. havia deixado décadas atrás?
VIDAL - Eu não fui embora dos Estados Unidos, isso é um erro de percepção. Nunca abri mão de minha cidadania, por exemplo. Há 40 anos tenho a mesma casa em Hollywood Hills e, nesses mesmos 40 anos, também mantive uma casa no sul da Itália, que agora vendi porque sou muito preguiçoso. E também por conta da minha dificuldade em andar.
FOLHA - No final do recém-lançado segundo volume de suas memórias, "Point to Point Navigation", o sr. sugere que o presidente John F.Kennedy teria sido assassinado pela Máfia. Por que reabrir esse caso?
VIDAL - Por que reabrir o caso? E por que deixá-lo trancado? Dois historiadores muito respeitados gastaram décadas de suas vidas registrando coisas que o governo não queria que o povo soubesse. No processo dessa descoberta, me inspirei a explicar a ironia para leitores que não têm a menor familiaridade com esse recurso retórico: é aparentemente um fato que, enquanto os irmãos Kennedy usavam elementos da Máfia para armar o assassinato de Fidel Castro, outros elementos da Máfia conspiraram e foram bem-sucedidos no assassinato do presidente Kennedy. E, no meio dessa confusão, Fidel Castro sobreviveu.
FOLHA - O relato da morte de Howard Auster, seu companheiro dos últimos 50 anos, já foi descrito pela crítica como "o mais selvagem e pungente da morte de um companheiro que alguém provavelmente lerá na vida". Ao mesmo tempo, é sem floreios. Como foi reviver aquele momento quando teve de escrever a respeito dele?
VIDAL - Selvagem? Obviamente minhas citações de Montaigne se perderam. Eu apenas aceitei suas sugestões [o ensaísta francês exortava os escritores a descrever o que viam, não o que sentiam], o que geralmente é algo bom a se fazer.
FOLHA - O sr. foi candidato democrata ao Congresso pelo Estado de Nova York e ao Senado pela Califórnia. Agora que o partido está no poder novamente no Legislativo, consideraria se candidatar de novo?
VIDAL - Claro que não. Tudo depende de levantar fundos para a campanha, o que eu jamais poderia fazer.
FOLHA - O sr. foi conselheiro de Federico Fellini, fez amizade com Tennessee Williams, participou de um episódio do desenho animado "Os Simpsons" e foi entrevistado por Ali G, outro personagem do ator de Borat. Como consegue transitar dessa maneira pela alta cultura e pela cultura popular?
VIDAL - O professor Marcie Frank tem um interessante estudo em que sugere como eu faço isso. Chama-se "Como Ser Um Intelectual na Era da TV -As Lições de Vidal".
FOLHA - A nova "grande ameaça vermelha" da América Latina é o presidente Hugo Chávez, segundo os republicanos mais radicais. Qual a sua opinião sobre o venezuelano?
VIDAL - Acho Chávez um cínico fabuloso.
FOLHA - E o que o sr. acha que que vai acontecer com Cuba depois da morte de Fidel Castro?
VIDAL - Chávez é um herdeiro que honra a revolução iniciada por Castro.
FOLHA - O sr. viajou ao Brasil pelo menos uma vez, em 1987. Lembra-se do episódio?
VIDAL - Claro, me lembro com muito prazer. Como o malicioso general De Gaulle uma vez disse, o Brasil é a grande nação do futuro, e sempre será.
FOLHA - Para terminar, como enxerga o governo Lula?
VIDAL - Digamos que não estou a par do Lula.
BOX 1
Soberba acirra ódio dos rivais conservadores
Modéstia e correção política. Eis duas qualidades que passam longe de Gore Vidal e de seus textos. Como o próprio já disse, "Vivi dois terços do último século e quase um terço da história norte-americana. Sei do que falo." Se a experiência e as amizades realmente dão peso às suas opiniões políticas, a soberba acirra ainda mais o ódio que ele desperta nos setores mais conservadores da vida americana.
O fato é que, com o lingüista Noam Chomsky e a ensaísta Susan Sontag, morta em 2004, Vidal foi um dos únicos pensadores liberais a ousar vir a público para questionar a política externa norte-americana pós 11 de Setembro, período em que um editor chegou a declarar que "a ironia está morta" e que o então porta-voz da Casa Branca advertiu os jornalistas a terem "cuidado com o que escreviam".
Vidal desrespeitou as duas assertivas, especialmente nos textos das coletâneas "Perpetual War for Perpetual Peace or How We Came To Be So Hated" (Guerra Perpétua para Paz Perpétua ou Como nos Tornamos Tão Odiados, 2002), "Dreaming War -Blood For Oil and the Cheney-Bush Junta" (Sonhando com a Guerra -Sangue por Petróleo e a Junta Cheney-Bush, 2002) e "Imperial America - Reflections on the United States of Amnesia" (América Imperial - Reflexões sobre os Estados Unidos da Amnésia, 2004).
O mesmo espírito está na segunda e última parte de suas memórias, que acabam de ser lançadas nos EUA. Em "Point to Point Navigation", há um desfilar de nomes que fizeram a história norte-americana nas últimas décadas, principalmente na política, mas também em Hollywood, nas letras, nas artes e, em menor medida, no empresariado.
O nome, navegação de cabotagem, em português, ele tirou desse trabalho que realizou quando jovem -quando teve sua primeira paixão fulminante, por um jovem marinheiro que depois morreria na Segunda Guerra Mundial. A homossexualidade de Vidal, aparece tanto aqui quanto em "Palimpsesto", a primeira parte das memórias, de 1995. Quando indagado por um repórter sobre quando havia "saído do armário", respondeu: "Nunca estive no armário". (SD)
BOX 2
ISSO É GORE VIDAL
Nome completo: Eugene Luther Gore Vidal
Nascimento: 3 de outubro de 1925, em West Point, NY
Árvore genealógica política: neto do senador Thomas P. Gore, enteado do padrasto de Jacqueline Kennedy Onassis, primo distante do ex-vice-presidente e candidato à presidência Al Gore
Livros recentes: "Point to Point Navigation", segunda parte de suas memórias, ainda inédito no Brasil, e "The Last Empire", lançado em 2001 e que chega ao Brasil em 2007 pela Rocco
Principais livros: a série de ficção política "Crônicas Americanas", que tem, entre outros, "Império" (1987)
Fonte: Folha de S. Paulo (12/02/2007)
Vale a pena ler o que pensa o Gore Vidal.
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