sexta-feira, 6 de abril de 2007

a piauí é aqui



piauí nova nas bancas. Estou lendo. Vim navegar e descobri que a matéria que mais gostei, das que li até o momento, está na rede. Vale a pena ler.
Um trabalho de pontos, vírgulas e interrogações
A rotina de uma escritora que escreve de tudo por encomenda e tem clientes até na USP
Maria Lopes

No começo da carreira, Maria Lopes, paulistana formada em taquigrafia, dizia que seu trabalho consistia apenas em digitar textos, e fazer cartões de visita, em computadores 386. Aos poucos, acrescentou a elaboração de convites, currículos, etiquetas, folhetos, impressões, design de imagens, estampagem em camisetas, transcrições de fitas K-7, apresentações em slides, scanners de fotos, instalação de programas, revisões ortográficas e gramaticais, elaboração de resumos de textos e de livros e traduções. Mais adiante, seu folheto de divulgação foi incrementado com o oferecimento de resenhas de livros, revisão de textos acadêmicos conforme a Associação Brasileira de Normas Técnicas, a ABNT, ou elaboração total de monografias inéditas, artigos, ou TCC (trabalho de conclusão de curso) de qualquer área.

Ela pode até ouvir a voz dos puristas dizendo: Ih, que horror de trabalho! “Entre eles”, acrescenta hoje essa paulista de 53 anos, com dois filhos, “estão muitos dos que levam para casa canetas da empresa e, disfarçadamente, comem umas uvinhas no supermercado. Para todos, digo que entendo meu trabalho como o de uma cozinheira, que recebe encomendas de doces e salgados: entrego o bolo, o cliente paga, leva e, a partir daí, faz o que bem entende com o produto. Pode jogar tudo fora, ou só a cobertura. Pode usar a base e colocar um creme novo e cerejas. Ou pode dizer que foi ele quem fez e promover a maior festança.”

Para resguardar a identidade dos clientes, Maria Lopes disfarçou as características deles no seu diário. Os acontecimentos, no entanto, ocorreram conforme o relatado. Para os títulos, escolheu nomes similares aos de alguns trabalhos que fez em épocas anteriores.


SEXTA-FEIRA, 2 DE MARÇO
Parece que este mês não será diferente dos outros. Tenho agendados quatro trabalhos com prazos curtos e dois com prazos mais longos. Depois de tomar café e estender a roupa, é melhor começar pela resenha, já que é um livro tão fino quanto Quem mexeu no meu queijo e não parece tão complicado quanto Estrutura e função da linguagem, da maior autoridade em lingüística gramatical sistêmica, o britânico Michael Halliday. Com certeza é menos medonho do que Introdução à Visão Holística, que queria que eu “vibrasse com o Universo”. Era só desenvolver o hemisfério direito do cérebro, e penetrar no meu eu profundo, para virar Deus.

SÁBADO, 3
Passei a madrugada lendo e consegui acabar a digitação da resenha de manhãzinha. Como o aluno vem buscá-la daqui a pouco, vou aproveitar o dia para limpar a casa, lavar e passar a roupa acumulada, dar uma chegada no mercado e comprar a tinta da impressora na papelaria, para imprimir os convites de casamento da vizinha. Ela ficou de me trazer os convites em branco assim que os comprar, na praça da Sé. A vida está tão difícil que o jeito é economizar de tudo quanto é jeito.

Onze da noite, chegou a hora de comer alguma coisa enquanto leio Dibs, em busca de si mesmo, ótimo trabalho da psicóloga Virgínia M. Axiline. Depois, ficarei no computador por um bom tempo e começarei revisão de um TCC de marketing. Devo entregá-lo daqui a oito dias. Sempre fico ansiosa com os prazos. É difícil descobrir se vou conseguir terminar a tempo, já que tudo depende do assunto. Além disso, preciso estar sempre contornando problemas de formatação, principalmente quando há desenhos e tabelas. Isso toma tempo. Mas nunca entreguei nada fora do prazo. Vejo isso como ponto de honra, assim como mostrar um trabalho caprichado, coerente e com o menor número de erros. Dentro do possível.

A revisão está demorando. Preciso tomar cuidado com a gramática e o ritmo (é haja vista ou haja visto? Ponho ponto e vírgula ou começo um parágrafo novo?). A formatação foi fácil: só precisei seguir o manual da faculdade e as normas da ABNT. Já o assunto do trabalho é muito chato, como é chata toda a área de administração e marketing. O título: As características do profissional de marketing do século XXI. Preferia mil vezes que fosse de direito, psicologia ou pedagogia, minhas matérias preferidas. Adorei quando tive que revisar Crime, prisão e penas. Ficou um trabalho de dar gosto.

São duas da manhã. Decido fazer uma pausa para ler Descobrindo crianças: a abordagem gestáltica com crianças e adolescentes, da psicanalista Violet Oaklander, para fazer a outra resenha agendada. Depois, é passar o resto da madrugada folheando revistas da minha imensa pilha, em busca de artigos sobre responsabilidade social e terceirização -- assuntos incompatíveis, por sinal.

Para quem não sabe como se dá a atividade de “folheador” – verbete que deveria constar do dicionário Aurélio, mas ele morreu antes de poder fazê-lo –, eu explico: trata-se de sentar no chão da sala, retirar do armário uma revista da primeira pilha de 2006, olhar o índice em busca da palavra-chave, encontrar a reportagem ou artigo, ler e separar o dito cujo em pilhas bem equilibradas classificadas como “vai servir” e “irrelevante ou sem conteúdo”. Após alguns dias, o folheador obterá bons textos, de autores conceituados, para serem citados nos trabalhos acadêmicos. Senão, terá que apelar para um arquivo de recortes de jornais previamente numerados, e precedidos de uma folha com índice analítico. E atenção: procure não comprar as três revistas semanais tops, porque não irão ajudar grande coisa. A não ser que você queira falar de marketing e moda.

DOMINGO, 4
Ah, não! Acabo de olhar os meus e-mails e meu gerente de negócios pediu que interrompesse o que estou fazendo, para dar uma força a uma cliente desesperada: ela vai ter que pagar um semestre inteiro se não aprovarem a monografia que ela já fez. Como ela não tem muitas condições financeiras, não vou receber o valor de costume. E o pior: tenho sete dias para dar um jeito nas cinqüenta folhas! Fazer o quê? Tenho por pressuposto que preciso ganhar dinheiro, mas acima de tudo devo ajudar: a) cliente que trabalha fora, estuda à noite e tem família (o preço deve ser menor); e b) se, além disso, é mãe e tem jornada dupla (baixo mais um pouco). No caso de ser categoria c) gente que não trabalha, é jovem, solteiro e estuda na PUC, Mackenzie, Santa Marcelina ou faculdade bizarramente cara, eu cobro o dobro. Meu lema é “tire dos ricos para dar aos pobres”, e com isso consigo “democratizar” meu trabalho. Na verdade, o que faço é um luxo para poucos.

QUARTA-FEIRA, 7
Adorei fazer a revisão. Era um trabalho sobre dislexia em crianças do ensino fundamental. Precisei usar muita criatividade. O texto estava confuso, mas não tinha nada copiado da internet, como é comum. Sempre procuro checar isso. Infelizmente, era tamanha a falta de fontes e, além disso, copiadas sem nexo, que não deu para aproveitar uma boa parte. Cadê o professor de metodologia dessa faculdade?

Ao final, precisei inserir dezoito folhas novas no lugar do material deletado. Para tanto, peguei meus livros e textos sobre o assunto – tenho caixas e caixas de livros que ganhei, peguei no lixo ou comprei numa entidade beneficente –, e elaborei tópicos condizentes, sem deixar de considerar a linha de pensamento e a forma do cliente se expressar. Na conclusão, e no resumo de 250 palavras, não resisti e dei meu toque final no estilo “educação para todos”. Em seguida, pedi a minha filha para corrigir meu Abstract, o resumo transcrito para o inglês. Tenho lá minhas fragilidades e, nesse caso, peço ajuda, ou então digo ao cliente, com antecedência, que o negócio está acima das minhas forças.

Faço esse tipo de elaboração de trabalho inédito há anos, desde o dia em que descobri que os resumos de livros, pedidos por um mesmo aluno, passo a passo tomavam a aparência de uma monografia de conclusão de curso. Ficou óbvio porque, logo a seguir, ele veio me pedir um paralelo comparativo entre os resumos. Então vi que era melhor assumir de vez meu lado ghost writer.

Daí a fazer uma monografia inteira, recebendo apenas o tema do cliente, foi um passo. Comecei a escrever sobre qualquer coisa, de acordo com a demanda do “mercado”. Dormia lendo Philip Kotler, o papa do marketing, e acordava para atacar Freud, almoçava devorando Sócrates e nem acreditava quando me traziam Como se faz uma tese, do Umberto Eco. Esse livro foi tão gostoso de ler que disse à cliente que eu é que deveria estar pagando! Acabei ganhando o livro de presente e o passei para outro cliente que estava precisando. Sempre empresto meus livros, sem custo e de bom grado, para quem precisa... mas foi assim que perdi todos os meus Serpa Lopes! Você, você mesmo que me lê, vê se me devolve, seu ladrão. E, se está com medo de passar carão, então entrega na biblioteca mais próxima como doação, senão invocarei contra você todas as maldições que estão no Tristram Shandy, do Sterne, ouviu?

Dessa forma, descobri minha vocação. Vivo feliz trabalhando com o que mais gosto, livros, e até consegui realizar um de meus sonhos: arrumar uma biblioteca. Me senti a própria Guilherme de Baskerville, de O Nome da Rosa, de saias, ainda mais que foi para uma instituição de religiosos franciscanos.

Quer ler mais?
http://www.revistapiaui.com.br

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