sábado, 14 de abril de 2007

A morte dos jornais?


A “morte” dos jornais
é um bom negócio

Alberto Dines
A famosa matéria de capa da revista The Economist (24/8/2006) em que se anunciou a morte dos jornais foi montada basicamente com as opiniões de consultores.

Este pré (ou pseudo) necrológio do jornalismo impresso foi evidentemente escrito por jornalistas, já que consultores – porque são consultores – sabem montar impecáveis apresentações coloridas em power point, mas não se arriscariam a sentar numa redação para vivenciar os inexplorados desafios do jornalismo e, em seguida, escrever vinte parágrafos a respeito.

Na antiguidade bíblica os profetas eram marginais, não faziam parte do establishment. Por isso, eram livres para perceber as rotas de colisão armadas pelos reis, sacerdotes, generais e poderosos em geral. Os profetas do Velho Testamento não eram adivinhadores nem prestidigitadores, não faturavam para antecipar tendências, nem estavam a serviço de interesses materiais ou políticos. Quando advertiam o povo para o eventual apocalipse imaginavam que seria possível evitá-lo. Se falhassem, seriam os primeiros a ser sacrificados.

Profecia é coisa séria, o Padre Vieira que o diga. Futurólogos ou futuristas podem ser encontrados em qualquer esquina: dos caríssimos palpites do gordíssimo Hermann Kahn hoje ninguém lembra.

Discurso fácil

A matéria-prima dos descobrimentos, invenções ou inovações é constituída basicamente de aperfeiçoamentos. A humanidade, além da vocação hegeliana para preferir sínteses, é sovina, não gosta de desperdiçar suas conquistas. Prefere adicionar, agregar (para usar o verbo preferido pelos consultores). A própria noção de progresso incorpora a idéia de avanço, desenvolvimento, expansão e, raramente, de negação, abandono, obsolescência.

Do estilingue aos balísticos (passando pelo arco-e-flexa, catapulta e mosquetões), do trem a vapor ao TGV, do 14-Bis ao aerodinâmico Stealth, assim como nas biografias dos pioneiros e precursores prevalece a linha reta, somadora. Há desvios, caso do filme fotográfico abalado pelas tecnologias de reprodução eletrônica, porém ainda não descartado.

Em compensação, os moderníssimos geradores eólicos de eletricidade são os mesmíssimos moinhos de vento que, a partir da Idade Média, convertiam o trigo em farinha e contra os quais investiu o delirante Quixote. A maravilhosa criatura de Miguel de Cervantes, símbolo da liberdade de sonhar, se bem-sucedida na luta contra os enormes monstros poderia ter acabado com a utilização da energia dos ventos. O engenhoso fidalgo de la Mancha felizmente foi malsucedido – para o bem da literatura e do aproveitamento de energia limpa. Cuidado, pois, com o discurso fácil da inevitabilidade das mudanças tecnológicas radicais.

Minguados dois séculos

O papel é herdeiro da ancestral linhagem de veículos capazes de reproduzir e conservar mensagens, iniciada com a pedra, continuada pela argila, papiro, tecidos, seda, pergaminho até chegar ao papel propriamente dito. O jornal, como repositório para preservar fatos dignos de serem lembrados, tem pouco mais de 400 anos de existência [ver, neste OI, "Preto no branco, 400 anos fazendo história"]. Ainda não esgotou o seu potencial. Sobretudo naqueles recantos do mundo onde a sua tarefa civilizatória apenas começou.

Aqui chegamos ao futurismo apocalíptico de viés anglo-saxão, inventado para confundir os ingênuos que esperam novo bezerro de ouro a cada década.

Enquanto os Founding Fathers da República Americana inventavam a Primeira Emenda para evitar que uma democracia se convertesse num regime totalitário, no mesmo continente, abaixo do Equador, ainda estávamos dominados pela Santa Inquisição. Não líamos jornais, nossas tipografias eram desbaratadas pelos esbirros, os livros eram impressos além-mar.

Nosso timing é completamente diferente do americano. Os EUA, como nós, também não tiveram uma Renascença, mas gozaram plenamente os benefícios do Iluminismo. Convém lembrar que em 2008 a imprensa brasileira vai comemorar os seus minguados 200 anos de vida, e que pouco antes de produzir em Londres o primeiro veículo livre de censura do mundo lusófono, o gaúcho Hipólito da Costa foi posto no xilindró do Santo Ofício em Lisboa (1802), acusado de pertencer à maçonaria. Nosso arco histórico é outro, não adianta encurtá-lo – pode quebrar.

Natureza do papel

Não há como negar que a imprensa americana está numa penosa enrascada, mas a enrascada é endógena, resultado de circunstâncias específicas, fruto do livre-arbítrio que foi capaz de produzir formidáveis avanços junto com catastróficos retrocessos. Ao tentar reinventar-se a cada temporada, o jornalismo americano perdeu alguns dos seus atributos essenciais herdados dos ingleses.

Aquela "coisa" chamada USA Today (que tanto empolgou os futuristas tupininquins no início dos anos 1980) era uma mistificação. Fazer televisão em papel impresso só cabe na cabeça daqueles que na busca insana de novas tendências e segmentações são capazes de matar a galinha de ovos de ouro simplesmente para descobrir o que há em suas entranhas.

Os tablóides ingleses foram inventados no fim do século 19 para atender o leitor/trabalhador que utilizava o transporte de massa. Já o USA Today foi invenção dos laboratórios de marketing a pretexto de atender o leitor que vive se deslocando de um canto a outro dos EUA – imaginava-o um imbecil e só lhe oferecia fotos coloridas, resultados esportivos, previsão do tempo e meia-dúzia de notícias niveladas pelo tamanho mínimo.

A diferença de timing não está apenas entre o hemisfério norte e o sul. A mesma Economist mostrou recentemente que enquanto declina a produção de papel de imprensa nos EUA, a européia aumenta. Ligeiramente, mas não despenca.

A internet veio para ficar: é forma de participação, meio de expressão, ferramenta, veículo de informação, entretenimento e agora com a Second Life tornou-se uma espécie de existência virtual, extraterrena, tecno-esotérica. Mas as maravilhosas conquistas da web são exibidas e transcorrem na tela de um monitor, sua rival em velocidade e formato é a TV. Jornais e revistas são outra coisa. Estão contidos, dimensionados e condicionados pela natureza do papel.

Mesmo que este papel deixe de ser produzido a partir da celulose, seu substituto deverá reproduzir suas qualidades de portabilidade, acessibilidade, perenidade e, por mais paradoxal que isso possa parecer, de descartabilidade.

Utopia escravizada

O anunciado fim dos jornais é um caso clássico de auto-indução. Ou auto-intoxicação. Se a mídia impressa não acreditar em seus prognósticos, quem acreditará? Na delirante busca por novas tendências e modismos, o jornalismo impresso americano entregou-se ao conluio apocalípticos + futuristas. Anunciou o seu próprio fim e obrigou todos a acreditarem nesta história de terror.

A crise provocada pela troca geracional (ex: o envelhecimento dos baby-boomers) foi mal avaliada. As novas gerações num primeiro momento procuram romper os laços com as anteriores. Leva uma década, duas, mas em seguida os rebeldes começam ansiar por mudanças e acabam por aninhar-se nos esquemas já conhecidos, pelo menos de oitiva.

"Ser moderno no século 21 é olhar para o passado", disse o crítico francês Nicolas Bourriaud quando veio ao Brasil, em outubro de 2006. Mas os marqueteiros e farejadores de tendências nos EUA e Inglaterra imaginaram que as novas gerações haviam rompido definitivamente com o jornalismo impresso. Perceberam indícios de um fenômeno e decretaram que estava concluído.

A imprensa caiu na esparrela: como faz habitualmente, magnificou as conclusões e a sociedade americana assimilou-as por mimetismo ou macaqueação. Com preguiça de reinventar conteúdos e buscar alternativas para a ação institucional dos seus veículos, os anglo-saxões preferiram reinventar a tecnologia para produzi-los. Apostaram cegamente na possibilidade de aumentar o grau de participação das audiências certos de que a universalização do conceito blog seria suficiente para validar a web como símbolo da radicalização democrática.

Engano. Quem o comprova é o barão-tubarão Rupert Murdoch ao constatar que a internet, imaginada como uma utopia comunicativa, território livre e soberano, encontra-se hoje escravizada pelo mercado e ainda mais concentrada do que a mídia tradicional (O Globo, domingo, 8/4, pág. 33; ver "Internautas independentes são `estrelinhas numa galáxia gigante´").

Factóides sociológicos

Para o observador brasileiro é difícil verificar como ocorre nos EUA a transição dos veículos jornalísticos tradicionais para a internet. O cidadão americano médio toma suas grandes decisões exclusivamente a partir do que se informou por intermédio da web?

Uma coisa é certa: no Brasil, apesar dos jornais cada vez menos diferenciados e cada vez mais previsíveis (como afirmaram o primeiro e o recém-empossado ombdusman Folha de S.Paulo – domingo, 8/4, pág. A-8), o jornalismo na internet está longe de ser a principal fonte de critérios, juízos e até mesmo de informações elementares. Produziu avanços, é certo (este Observatório da Imprensa, há 11 anos na web, é prova disso), mas a mídia tradicional tem ainda um longo caminho a percorrer.

Nos EUA, sociedade de serviços por excelência, os consultores vivem para criar agitos, transições, transformações e outros factóides sociológicos. No Brasil, os consultores fizeram seus estragos no fim dos anos 1990. Graças a eles, aqui a Era Gutenberg mal começou. Nosso futurismo tem muito a ver com o extraordinário acervo de oportunidades perdidas.

Fonte: Observatório da Imprensa

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