Ninguém cala esse amor, Lula Vieira

Legenda: a carteira do Botafogo Football Club de 1938. A mensalidade era de 5 mil réis. Nesse ano o Brasil tira o 3º lugar na Copa do Mundo, realizada na França. Na Seleção Brasileira 5 craques eram botafoguenses: Nariz, Zezé Procópio, Martim e Patesko. No Rio o clube vence o Torneio Início.

Agora mesmo é que ninguém segura mais o Blog do PC. Meu camarada framenguista Maurício Menezes, mesmo com a cabeça inchada, resolveu dar mais uma força para o Blog e avisou que o publicitário Lula Vieira tinha um texto sobre o Glorioso e que topava mandar para eu publicar aqui no Blog. O santista Lula é um dos maiores publicitários do país (quiçá do mundo) e divide um show engraçadíssimo com Maurício, "Lula contra o Mau".

O Blog do PC tem cada vez mais gente famosa colaborando. Vou acabar participando da "Dança dos famosos" no Faustão. Ladies and gentlemen and tricolores, com vocês:

Ninguém cala esse amor, por Lula Vieira

Na fila dos sócios do Botafogo para comprar ingressos para o jogo Botafogo e Flamengo, um cidadão elegante, esbelto e educado se distinguia entre a multidão de bermudas e camisetas. Não que estivesse vestido a rigor, mas os seus trajes, que poderiam ser chamados de esportivos, estavam na moda em 1940, quando o máximo de liberdade era usar uma camisa sem gravata e uma calça um pouco mais clara. Ainda que pudesse aparentar ter mais de 60 anos, o que lhe concederia a condição de idoso e garantiria o direito de furar a fila, agüentou pacientemente sua vez, como manda o melhor figurino da urbanidade.

Alguns jovens ainda lhe ofereceram passar à frente, atitude não muito comum nos dias de hoje entre os mais novos, mas o senhor agradecia com um sorriso. “Pode deixar – aqui está tudo bem”.

E devia estar mesmo, pois ele não demonstrava nem cansaço nem nervosismo. Era a fila para comprar ingressos para um clássico e talvez o tempo de espera estivesse sendo aproveitado para relembrar as jogadas de Leônidas da Silva, Patesco, Heleno de Freitas, Pirilo, Nilton Santos. Devia ter tido espaço nessas relembranças até para o Biriba, o cãozinho mascote, tão conhecido e importante que fazia parte dos contratos de jogos no exterior. A cota do Botafogo era menor caso Biriba não comparecesse no campo.

Tanto como qualquer craque, a saúde de Biriba era zelosamente mantida, a ponto de Macalé, seu personal coach, experimentar seu filé antes de servir, evitando um eventual envenenamento por parte de Flamenguista despeitado. Não fosse pouco educado faze-lo em público, poderia até assobiar o hino do Glorioso: “Botafogo, Botafogo, campeão desde 1910. Foste herói em cada jogo, Botafogo...” Ele sabia que este não é o hino oficial do clube, mas é o mais conhecido e mais “cantabile”. Pouca gente conhece o verdadeiro, letra de Octacílio Gomes: “Botafogo gentil, pura glória do esporte brasileiro, a expressão mais viril...da energia e do brio verdadeiro...”

E o tempo passa, como diria Valdir Amaral nas gloriosas narrações das jornadas épicas da Estrela Solitária. Eis que chega sua vez. Tira do bolso uma carteirinha onde se lê: Botafogo Football Club Matrícula 227 – Exmo. Sr. Francisco Palhano Pedroso, aspirante. Devidamente assinada pelo “thesoureiro” e datada: Rio, 18 de agosto de 1938. O funcionário olha espantado para o documento, de couro, com capa em letras douradas: Botafogo F.C.

O diálogo que se segue é um tratado de humor. Diz o funcionário: “não existe mais o Botafogo Futebol Clube, meu senhor. Desde 1942 ele se chama Botafogo de Futebol e Regatas. O novo nome se deve à uma fusão entre os dois Botafogos que existiam no Rio. Acho que sua carteirinha perdeu a validade!” O senhor ajeitou os óculos e examinou a carteira como se nunca a tivesse visto. Depois de algum tempo comentou: “puxa vida, o clube mudou de nome e ninguém me avisou!” E concluiu: “deve ser por isso que desde outubro de 1941 não me cobram mais a mensalidade. Até então eu pagava religiosamente, como o senhor pode ver pelo recibo de outubro. Esta aqui, assignada pelo “Thesoureiro” e com validade até “o dia 5 do mez immediato”. Tentando sair com bom humor da situação o funcionário ainda respondeu que a carteira “deixou de ter validade dia 5 de novembro de 1941”.

O homem elegante segurou a carteirinha ainda mais próximo dos olhos e pediu: “o senhor poderia chamar o Carlito Rocha para dirimir esta questão?” Foi a sua sonora gargalhada que terminou com o espanto.

O advogado Francisco de Paula Palhano Pedroso, pai do Luiz Fernando Pedroso, tinha encontrado entre seus papéis a tal carteirinha e resolveu testar a reação das pessoas diante dela, como um emissário do passado. Absolutamente lúcido, estava fazendo apenas uma brincadeira. Comprou o ingresso com a carteira válida, colocou o bilhete no bolso e ainda deu o golpe final: “Dizem que Gérson não joga...você sabe de alguma coisa?” E saiu sorrindo, moleque como o Garrincha.