terça-feira, 9 de outubro de 2007

40 anos do assassinato de Che: Brasileiro lamenta não ter sido o 'vingador de Che'




Brasileiro lamenta não ter sido o 'vingador de Che'
Amílcar Baiardi conta como foi errar o tiro contra o assassino do revolucionário 40 anos após a sua morte
Lucas Pretti, do estadao.com.br

SALVADOR - O sonho desse intelectual baiano de 66 anos era ter escrito a carta até o fim: "Um ano e pouco depois, o Comando de Libertação Nacional, em nome dos oprimidos de todo o mundo, vinga o assassinato de Che Guevara". Em 1968, o jovem Amílcar Baiardi fez parte do grupo de brasileiros que tentou matar Gary Prado, o militar boliviano que capturara Ernesto Guevara de la Serna um ano antes, em 8 de outubro de 1967, 40 anos atrás. Mas o tiro atingiu o peito errado - e Baiardi participou de um dos principais erros históricos da esquerda brasileira. A frustração o persegue quatro décadas depois. "Seria muito reconfortante ter matado Gary", diz em entrevista exclusiva ao estadao.com.br.

Intelectual e profundo conhecedor das táticas de guerrilha rural, Baiardi foi o responsável por redigir o comunicado oficial do Comando de Libertação Nacional (Colina) sobre a morte de Gary Prado à imprensa. Esperou pelos três "companheiros" quase uma hora num "aparelho" clandestino no bairro do Botafogo, no Rio de Janeiro. Quando chegaram, com a missão cumprida e uma pasta supostamente do militar boliviano, perceberam que algo estava errado. Documentos em alemão. Haviam matado Edward Ernest Tito Otto Maximilian Von Westernhagen, major do Exército alemão.
Baiardi amassou e destruiu imediatamente o rascunho da carta. Firmou com João Lucas Alves, Severino Viana e José Roberto Monteiro (os três companheiros) um pacto de silêncio que durou até 1988. Apenas ele sobreviveu à ditadura. O hoje professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), vencedor do Prêmio Jabuti de Literatura em 1997 e ex-guerrilheiro recebeu o estadao.com.br em seu apartamento, em Salvador, para contar a história. E falar de Che, o "visionário romântico".

Você tem formação em guerrilha rural, chegou a organizar o primeiro exército de guerrilheiros rurais no Maranhão. Como foi parar em uma ação urbana no meio do Rio de Janeiro?
Eu não estava no grupo tático do Colina que organizou o atentado a Gary Prado. Mas como sabiam que eu tinha experiência e uma cultura mais geral do que era o movimento de libertação na América Latina, me pediram para redigir a mensagem ao povo brasileiro comunicando a vingança de Che Guevara. Tanto que no aparelho tinha uma máquina de escrever e eu já estava preparando o que seria a mensagem.

Esse papel ainda existe?

Não, não... Fiz um manuscrito que depois embolei e destruí lá mesmo. A mensagem seria assim: "Um ano e pouco depois, o Comando de Libertação Nacional, em nome dos oprimidos de todo o mundo, vinga o assassinato de Che Guevara". Imaginava que teria uns quatro a cinco parágrafos. Terminaríamos com a exortação dos revolucionários no Brasil para a construção de uma frente guerrilheira única. Era um discurso nessa direção. Deixaríamos a mensagem numa caixa de correio e avisaríamos os jornais. Seria uma bomba jornalística, era a idéia.

Você foi o mentor do atentado?

Não, fui convocado pelo Colina. Tinha uma relação muito próxima com dois dos companheiros. Um paulista agrônomo, José Roberto Monteiro, que trabalhou comigo no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). O outro era João Lucas Alves. Ficamos muito ligados em decorrência do material sobre guerrilha que eu havia trazido da Colômbia. Ele que me ligou e disse: "Venha para o Rio de Janeiro que temos uma ação para você, uma ação de impacto que vai projetar nossa organização".

As táticas usadas pelo Colina eram as mesmas de organizações mais reconhecidas na época como a Ação Libertadora Nacional (ALN), de Carlos Marighella, e a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), de Carlos Lamarca?
Sim. Tínhamos uma infinidade de medidas de segurança. Tanto que cheguei vendado ao que se chamava de aparelho, creio que em Botafogo, não sei direito até hoje. Como combinado, num determinado local, num certo dia, o João Lucas me pegou, me deu a venda e eu entrei num apartamento. Foi aí que soube: "Nós vamos vingar o Che". Foi feito o levantamento do Gary Prado, a imprensa tinha noticiado que ele tinha ido ao Rio para cursar a Escola Superior do Estado-Maior, na Praia Vermelha. Cheguei, tinha lá um sanduíche, uma máquina de escrever. Era um aparelho típico. Pouca mobília, algumas armas, e ele me disse que chegaria, dentro de 40 minutos, com esta notícia: a comprovação de que o Gary Prado tinha sido executado.

Como descobriram o engano?
Eles voltaram com uma pasta. Quando abrimos, só tinha documentos em alemão, um passaporte em alemão. Aí não se teve mais dúvida de que se tinha cometido um erro histórico. Nossa fonte de informação era um soldado infiltrado no Exército e havia uma coincidência enorme. Fisicamente, Gary e o alemão eram parecidos, magros, altos, mesma cor de pele, não usavam óculos. Então fizemos um pacto: "Nunca ninguém vai saber disso, nem mesmo nossos companheiros da organização". Não abrimos em hipótese alguma, mesmo presos e sob tortura, porque isso comprometeria a organização. Mas aconteceu um fato curioso. O Gary Prado entendeu a mensagem. Uma semana depois ele desapareceu do Rio, suspeitando que seria o alvo.

Analisando com uma sabedoria de 40 anos de História, qual foi a maior besteira que Che Guevara disse e fez?
Ele foi excessivamente romântico e muito humanista. Eu diria que é um paradoxo: ser humanista e desenvolver luta armada revolucionária. O erro dele foi achar que poderia criar muitos Vietnãs, achar que transformaria os Andes em uma Sierra Maestra. Foi um grande equívoco. Ele começou a se dar conta disso quando chegou na Bolívia e a própria esquerda não o apoiou incondicionalmente. Ficou isolado pela própria esquerda.

E o grande legado? O que tem de vanguarda em Che Guevara?

Já como acadêmico, fiz um trabalho em que tentei entender os fundamentos do pensamento econômico de Guevara. Descobri coisas curiosas. Em primeiro lugar, uma visão que ele tinha como presidente do Banco Central e ministro da Indústria de Cuba de que o atrelamento com a União Soviética não era uma coisa boa e definitiva para Cuba. Ele tinha alguns debates com Charles Bettelhein, um economista francês, e dizia que o Comecom (Conselho para Assistência Econômica Mútua), o mercado comum socialista, de algum modo dava um tratamento a Cuba que se parecia a um grupo capitalista. Os soviéticos não se guiavam nas relações de intercâmbio pela Lei do Valor. Depois, em segundo lugar, Che defendia alguma forma de mercado, alguma descentralização. Era a mesma posição do economista polonês Oscar Lange. Flexibilização, que houvesse no tecido socialista pequenas e médias empresas. O pensamento econômico deles estava muito avançado em relação à época.

Não é o que se busca hoje - associar capitalismo com ganhos sociais?

Diria que Che anteviu o que aconteceu com alguns países do ex-bloco socialista, que se transformaram em economia de mercado, viraram o que se chama de "socialismo de mercado". Ele incomodava o "mainstream" soviético, o pensamento único. Outra coisa importante que ele pregava é a idéia do "novo homem", que produziria não apenas motivado por remunerações pecuniárias. Ele achava que tinha de chegar a um estágio do socialismo para as pessoas se movimentarem pensando na sociedade.

O que dizer do Che ícone pop, que virou tatuagem de Maradona e Mike Tyson, bandeira da Jamaica? Ele associado não à esquerda propriamente, mas à rebeldia em geral. É positivo?

Contribui na medida em que leva essas pessoas a saberem quem foi o Che, sua dimensão humana. Pensar nessas duas figuras, Maradona e Tyson, que são dadas a drogas, aí não é legal. Mas é um ícone para a capacidade de se rebelar, não aceitar o que vem de cima, as regras instituídas. Sua presença ainda durará muito tempo.

Che é o maior líder de todos os tempos da América Latina?

(Pensa) Sim... É um visionário, mais que propriamente um líder. Se fosse líder, conduziria multidões, o que não ocorreu. Mas como referência, não vejo ninguém à altura dele. Salvador Allende também foi uma figura extraordinária, pela coerência, e Camilo Torres, sacerdote colombiano. Mas nenhum atingiu o pedestal de Che.

Para finalizar. Você gostaria de ter matado Gary Prado? Queria ter dormido com essa?

Queria. Claro. Seria muito reconfortante. Mas hoje, fazendo a análise contra-factual, é curioso ver que Gary Prado joga a favor da redemocratização da Bolívia, um papel positivo na História. Isso só mostra que não devemos ser maniqueístas, dizer que todos que estão de um lado são ruins ou bons. Mostra que as pessoas podem mudar. People change.

Participe do debate sobre o Che no Jornal de Debates:
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